Blog

Tudo sobre Caldas

Cura ou bem-estar? Um caminho a ser escolhido na bicentenária termal Caldas? Eis a resposta.

Dra. Jussara Marques Oliveira Marrichi.
Turismóloga, Historiadora, Esteticista e atual Coordenadora de Projetos Termais no Balneário de Pocinhos do Rio Verde em Caldas/MG.

Mais um aniversário se aproxima. E não é apenas mais um. Trata-se do ducentésimo décimo aniversário. Duzentos e dez anos de vida, de história e de cultura de uma terra que já foi chamada de “o xodó do Senhor” nas palavras do imortal poeta.1

Elevada à categoria de freguesia em 27/03/1813, o antigo arraial passou a se chamar Nossa Senhora do Patrocínio do Rio Verde de Caldas, marcando então o início dessa história bicentenária que acompanhou o desenvolvimento do termalismo em nosso país. Nos anos seguintes, Nossa Senhora do Patrocínio de Caldas foi elevada à categoria de Vila onde recebeu a denominação de Caldas pela Lei nº 134 de 16 de Março de 1839.

Coincidência ou não, 1839 é uma data importante para a história do Termalismo no Brasil pois marca definitivamente um período em que as águas termais do nosso país aparecem pela primeira vez em uma publicação médica científica sobre os seus efeitos curativos. Obviamente as águas termais já haviam sido relatadas anteriormente. Há menções em 1545 sobre o uso dos banhos quentes pelos indígenas, no século XVIII quando a palavra Caldas aparece no Vocabulário Portuguez Latino ou quando viajantes, tropeiros e naturalistas acusavam a sua ocorrência, ou ainda no início do século XIX quando vemos a palavra thèrma no Dicionário de Língua Portuguesa. O fato é que após a primeira notícia científica divulgada pela Revista Médica Fluminense tem-se o início de uma série de publicações médicas relatando os seus efeitos curativos para o corpo e a atenção devida e declarada pelos doutores da ciência que chegavam às localidades onde se descobriam as fontes de águas termais. Vivíamos o nascimento da Hidrologia Médica no Brasil, um período marcado por análises físico-químicas, relatórios técnicos, estudos sanitaristas, importação de obras de referência de outros países que já estavam adiantados nesse saber, o início da construção de banheiras ao ar livre, balneários e os projetos das cidades termais, cidades singulares que escreveram  na história uma nova.

1 Geraldo Magella. Poeta, escritor, ex-secretário de Cultura de Caldas, amante e defensor das águas termais de Pocinhos do Rio Verde. Falecido em 07/07/2022.

maneira de se relacionar com o corpo, a doença, as viagens (de cura, o curismo) e as novas formas de sociabilidade termal.

É, portanto, no final desse século, o XIX, que chega em terras caldenses o médico e botânico sueco Anders Fredrik Regnell, responsável pelas primeiras análises e descrição das propriedades terapêuticas das águas de Pocinhos do Rio Verde em 1870. O médico que já conhecia a fama das águas termais na medicina europeia envia à Universidade de Upsala na Suécia amostras para serem validadas. É de lá então, que chegam as primeiras comprovações científicas atestando a sua eficácia para o tratamento de algumas doenças, dentre elas, catarros no tubo digestivo, hemorroidas e reumatismo muscular.

Entretanto, nesse momento, não vivíamos ainda daquele tipo de termalismo e sociabilidade que foi muito presente nas civilizações Grega e Romana da antiguidade. Os gregos tinham verdadeira adoração pelo corpo e era comum desde os tempos de Homero o divertimento nas termas gregas para o esquecimento de suas preocupações. A palavra banho que provém do grego balneíon exprimia lazer, diversão, desvanecimento dos pesares e angústias (Mourão, 1997). O próprio Heródoto, geógrafo e historiador grego foi o autor da primeira publicação científica na antiguidade sobre as águas termais evidenciando as suas possibilidades terapêuticas em detrimento das místicas. E Homero, um poeta grego do século IX a.C já mencionava o uso da água para o tratamento de fadiga, cansaço, doenças e melancolia.

Já no Império Romano, as propriedades das águas termais eram usadas quando seus soldados voltavam das guerras e assim repousavam os seus corpos em enormes caldeiras com efeitos curativos e relaxantes, chamadas de thermas. A função social das thermas romanas era imensa. Em seus templos balneários haviam espaços dedicados à leitura, aos jogos, às massagens, às palestras, à oleação corporal, aos passeios e à contemplação em grandes jardins. Foi um período áureo do termalismo na antiguidade. E por termalismo já registro aqui a origem de sua palavra: derivado de thermas, substantivo feminino no plural, que deriva do grego thermai e do latim thermae, dizendo respeito a banhos quentes (Mourão, 1997).

Pois bem, como eu já havia mencionado inicialmente, em meados do século XIX vivíamos o nascimento da Hidrologia Médica no Brasil, mas não tínhamos em nosso território nada que se comparava com o imaginário grego ou romano de sociabilidade ao redor das fontes termais. Era a terapêutica que nascia, a terapêutica médica. Tanto é que em 1818 (cinco anos após a elevação da freguesia de Caldas/MG) tivemos a inauguração do primeiro hospital termal no Brasil, nas Caldas da Imperatriz em SC. E é então, definitivamente com a chegada da família real em nosso país que esse termalismo médico vai se constituindo e se delineando aos poucos e durante os anos seguintes em nosso território. Já no final século XIX e início do século XX os lugares com fontes de águas quentes começam a ganhar estatuto de cidade, mas não qualquer cidade, uma cidade termal. Uma circulação imensa de saberes toma conta do nosso território e mais uma vez são os médicos a reclamarem do poder público as melhorias necessárias ao tratamento termal, o de cura, acrescido agora, dos serviços indispensáveis para a permanência nas cidades e ao esquecimento dos cuidados tristes (do termalismo!). Grandes parques, jardins, óperas, cassinos, hotéis, coretos, estações telefônicas, estradas de ferros são então requeridas para dar a esses lugares aparência e vivência de cidades modernas. Surgia então uma nova fase: o termalismo acrescido da sociabilidade moderna com seus prazeres, seus desejos e seus novos formatos de processar a cura, e aqui, refiro-me à cura física do corpo.

Os anos avançam e algumas cidades termais ganham destaque nacional e internacional, os modos de viajar e as recomendações médicas já propagavam uma nova maneira de se alcançar a cura baseada em uma nova perspectiva de repouso (uma das regras de higiene recomendadas pós o banho termal). Estamos na virada dos anos 30 e as vilegiaturas de prazer conquistam uma classe burguesa em ascensão em nosso país. Do repouso contido nos espaços dedicados a ele dentro dos balneários, ou na intimidade do quarto de hotel, o repouso é muito mais frenético, vira símbolo e status social. Estar em vilegiatura e repousar em uma cidade termal torna-se a maior forma de ascensão social. Partir em vilegiatura termal para repousar com uma agenda repleta de compromissos, movimentos e máscaras sociais entregam a essas cidades a etiologia da palavra banho, balneíon: lazer, divertimento, desvanecimento dos pesares e preocupações. O curista (aquele que procurava a cura) divide esse cenário também com outro personagem importante nas cidades termais, e agora balneárias: o turista que também chega para conhecer no interior do nosso país os prazeres e pecados do imaginário termal. E assim, durante poucos anos, curismo e turismo convivem, não harmonicamente, pois os curistas são então jogados para os bastidores dessa história social e cultural. O lazer e o prazer encontrados nessas cidades vão aos poucos perdendo a sua força, pois o homem moderno, ávido por novas experiências logo começa a provar de novos destinos turísticos como as excursões aos países vizinhos e a descoberta do litoral como símbolo de um novo status social. E é assim, que se inicia um longo período de decadência no termalismo médico brasileiro, cujas instalações balneárias e todo o seu grandioso patrimônio arquitetônico cai em desuso e esquecimento. Alguns, até em ruínas.

Mas é preciso lembrar nessa história da força da água termal, essa água milenar que sempre esteve ao nosso lado, mesmo muito antes da era de Cristo, quando os povos antigos (assírios, egípcios, hindus, gregos e romanos) já a utilizavam para a cura e equilíbrio espiritual. Porque foram essas águas que no pós-segunda guerra mundial receberam novamente os ex-combatentes para alívio de suas dores e corpos mutilados, dando início também a uma nova forma de acesso para aqueles que não podiam dispensar grandes quantidades de dinheiro para uma estada na cidade termal: o Termalismo Social.

O interessante desse momento histórico é que o surgimento desse conceito vem praticamente junto com a nova definição de saúde proposta pela OMS (Organização Mundial de Saúde) que define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas como a ausência de doença ou enfermidade”. E é aqui, mais uma vez que os doutores da ciência termal colocam essa água novamente no curso da história humana e de suas sensibilidades, pois, se ela já não curava com a mesma rapidez proposta pela descoberta da penicilina, era ela que contribuía para um novo discurso que nascia, onde o bem-estar físico, mental e social eram os novos indicadores de saúde para a população. Da neurastemia das grandes cidades à uma nova palavra que surgia no imaginário coletivo brasileiro (o stress), era mais uma vez a água termal, associada ao cooper (mas não só a ele) que promovia nos

espaços urbanos balneários uma nova maneira de cuidar da saúde associando o turismo e a medicina preventiva. De certo modo, os últimos médicos termais daquele século ainda tentavam fazer valer o seu valor e revalorizar os grandes parques e estabelecimentos termais que haviam sido construídos. Pregava-se o turismo de saúde ou o turismo da terceira idade, mas esquecia-se do discurso principal que era a medicina termal, esquecida, inclusive nas cátedras das universidades brasileiras.

Os anos avançam e o termalismo em nossos país conquista um olhar diferenciado pois é a partir de 2006 que o Ministério da Saúde institui através da Portaria 971, a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde, onde o Termalismo/Crenoterapia ganha lugar de destaque, agora, não mais como medicina curativa, mas sim, aquela integrativa e complementar, alinhada principalmente com a visão de saúde instituída no final dos anos de 1940 e a crescente procura das pessoas pelas Medicinas Tradicionais Complementares (MTC) que durante um período foram marginalizadas dos sistemas de saúde.

Chamadas então de PICS visam promover os mecanismos naturais para a prevenção de agravos e restabelecimento da saúde com foco na escuta qualificada, no fortalecimento do vínculo terapêutico e na integração do ser humano com o meio ambiente e a sociedade, além de abranger a visão ampliada do processo saúde-doença e a promoção global do cuidado humano, principalmente do autocuidado.

O homem muda, a ciência progride, o mundo evolui e a tecnologia nos surpreende, mas a água termal, não muda. Sua essência é a mesma: curativa. O que muda é a forma de olhar e de se relacionar com ela, pois se antes estava destinada à cura física do nosso corpo, em seu DNA já estava escrita todas as suas possibilidades curativas: a do corpo, da mente e do espírito. Ao longo de toda a sua história termal, esse líquido tão valorizado em antigas civilizações e tão desvalorizado na sociedade brasileira merece destaque quando ações efetivas são colocadas em prática em prol de sua valorização e acessibilidade.

Caldas, daqui uns dias irá comemorar os seus 210 anos de história e vivência. Hoje, a cidade é reconhecida nacionalmente e internacionalmente a partir de suas políticas públicas que olharam mais uma vez para suas origens, suas águas curativas. A partir da Lei n. 2441 que instituiu a Política Municipal de Práticas Integrativas e Complementares com ênfase no Termalismo Social e a primeira edição do TERMACALDAS, congresso internacional dedicado ao Termalismo e destinos turísticos saudáveis através das águas minerais, posso assegurar que diante de tudo o que foi brevemente aqui exposto, cura e bem- estar é uma equação que não se dissocia sob pena de fracasso em sua essência termal. Dezessete anos após a implantação da PNPICS presenciamos de forma efetiva como o Termalismo Social é de fato indutor da promoção de saúde e do desenvolvimento do turismo, seja nas modalidades, saúde ou bem-estar. Em tempos como o nosso, pós-pandemia, com milhares de pessoas afetadas não só com dores articulares, inflamações na pele, mas principalmente afetadas emocionalmente, sei e outros termalistas também sabem, o quanto essas águas e suas cidades devolvem a saúde, a qualidade de vida e o bem-estar. Existe toda uma ambiência termal por trás de suas banheiras e nada pode ser desconsiderado. É uma via de mão dupla, assim como a fé e a razão, a cura e a doença, a alegria e a tristeza.

Então, nesses seus 210 anos de vivência cujo território-mãe proporcionou a outras cidades ao seu redor desenvolvimento econômico, social, cultural e medicinal, é certo afirmar que não só Caldas, mas todas as cidades que possuem o diferencial das águas termais em seu subsolo tem por obrigação manter viva e trabalhar pela valorização da medicina termal, pois é ela que há alguns séculos continua sendo desenvolvida, pesquisada e colocada à disposição de outras pessoas em territórios internacionais, trabalhando em conjunto cura e bem-estar, adjetivos que não se dissociam na propagação e acessibilidade da terapêutica termal.

Caldas faz aniversário e ganha como presente o reconhecimento e a admiração de outros municípios e pesquisadores termais que compreendem e/ou estão compreendendo essa equação. Garantir o acesso da sua comunidade local ao tratamento termal clássico, respeitando a sua essência histórica mas não esquecendo dos conceitos contemporâneos que enxergam o homem como um todo garante a essa cidade nesse aniversário tão especial um lugar na história do Termalismo Brasil por tantas vezes negligenciado. Há aindamuita história para escrever e contar, dos primeiros médicos, empreendedores, gestores, curistas, turistas e seus defensores termais. Caldas que também já viveu o auge e o declínio do Termalismo Brasil, hoje pode comemorar, pois é motivo de orgulho para muitos amantes dessa ciência milenar.

Seu balneário envolto em um parque belíssimo, de natureza exuberante e com fontes radioativas, alcalino- sulfurosas e bicarbonatadas-sódicas emana saúde e bem-estar e comemora também os 9271 atendimentos realizados em 2022. Sua ambiência termal caracterizada pela singularidade e autenticidade da sua cultura sertaneja entrega resultados não só aos filhos da sua terra, mas também aos filhos de outras terras, no projeto de regionalização do tratamento termal, um marco histórico e inédito do Termalismo Brasileiro, descrito também no I Q -IIC Processo de Registro de Bem Imaterial – “O uso terapêutico das águas termais de Pocinhos do Rio Verde”, 2022. Das entranhas de suas terras emana uma água curativa, integrativa, científica e repleta de história. Que seu aniversário de 210 anos seja mais um capítulo bem escrito, a muitas mãos, centenárias, bicentenárias e contemporâneas que enxergaram e enxergam em seu DNA toda particularidade e beleza dessa respeitável cultura termal. Parabéns Caldas!! Parabéns a todos que escreveram e continuam escrevendo essa história!!

Share on facebook
Share on twitter
Share on telegram
Share on whatsapp

Utilizamos cookies para que você tenha a melhor experiência em nosso site. Para saber mais acesse a página de Política de Privacidade.